
Animação europeia, surrealista e com ótima trilha, retrata um mundo de confronto entre ETs espiritualizados e pequenos humanos selvagens, se está encantado com a concepção de mundo de Avatar? Então você precisa conhecer Planeta Fantástico (La Planète Sauvage, originalmente), animação de 1973 realizada em conjunto entre França e a então Checoslováquia, que abocanhou o prêmio especial do júri do Festival de Cannes no mesmo ano. Inspirado na obra Oms en série (Oms by the Dozen) (Stefan Wul - 1957), dirigido por René Laloux e com concepção artística de Roland Topor, Planeta Fantástico é um exemplo de quando o cinema ultrapassa a fronteira do entretenimento e torna-se arte.

Mitologia, surrealismo, artes visuais, lisergia e música se unem para ilustrar a vida no planeta Ygam, onde pequenos humanos, os Oms, convivem numa espécie de simbiose social com os seres Traags, gigantes humanoides azuis de olhos vermelhos que se alimentam de nuvens (!) e vivem à base de meditações (as "visões vívidas"), que numa metáfora direta representam o poder de abstração mental e também as drogas como as conhecemos (dizem que "Traags" - Draags em inglês - vem de drugs). Estes pequenos Oms são como formigas, escondendo-se em colônias selvagens na natureza, ou podendo ser domesticados pelos Traags - principalmente as crianças.
O filme conta a história de Terr, Om que é adotado pela pequena Traag Tiwa, e que ao longo de seu crescimento adquire o conhecimento da raça azul. Quando foge, Terr junta-se a seus selvagens comuns, disseminando tal sabedoria adquirida pelo "bracelete" de aprendizado roubado de sua dona. Assim, ambas espécies acabam por se defrontar - os Oms com a sua inteligência subestimada pelos Traags, o que culmina na guerra e numa espécie de darwinismo interestelar, em que ambos dividem o planeta, seus satélites, a sobrevivência e estilos de vida complementares.
Durante as "visões vívidas", os Traags se desmaterializam. E transam.
Mente, Natureza e Evolução: o Selvagem e o Fantástico
Planeta Fantástico abre as portas da percepção para zilhões de metáforas. A mais imediata, para a época, era a Guerra Fria bipolar com ameaça da extinção humana, com a particularidade de se referir nas entrelinhas à invasão soviética na Checoslováquia uma década antes. Também contextualiza pelo visual surreal as possibilidades artísticas trazidas pela disseminação do LSD também alguns anos antes - Yellow Submarine é uma óbvia referência, em fusão com a fantasia expedicionária de Julio Verne, piras visuais de Salvador Dali e a teoria evolucionista de Charles Darwin, obviamente.
Meditação = aprendizado
Enquanto Avatar é revolucionário pela ilustração apocalíptica e urgente do que poderia ser uma revolução verde e espacial - em que o segredo da vida plena está na simbiose entre mente e natureza, a animação checo-francesa exibe o confronto do profano, rude e selvagem (os homens), com a evolução espiritual que transpassa o físico (os extra-terrestres, cuja existência remete ao espírito de uma deusa que fugiu pelos mundos enquanto seu corpo era atingido). Assim, os ETs azuis se esforçam em adquirir grandes visões, que no filme são retratadas como a desmaterialização física em bolas flutuantes (o avatar!), sempre relacionada à ideia de vitalidade (impulsos, inteligência e até a reprodução, que ao fim do filme entra como turning point da guerra - a sexualidade sempre definidora das coisas). Ainda comparando com o a sensacional obra de James Cameron, os Oms tem como último recurso de segurança a "Grande Árvore", mesmo elemento que representa a razão da vida dos avatares azuis de 2010.
Se os Oms são sujos, vivem em bandos e se reproduzem rapidamente, os Traags são "asentimentais", trabalham a inteligência de forma diversa e tem até mesmo o sangue azul, a eterna ilustração da nobreza (que remete pele branquela e cheia de veias dos nobres e também ao caríssimo pigmento azul nos tempos antigos, que pintavam os mantos de reis e santidades). No fim das contas, tanto Oms e Traags são representações de parte de nós; de nossa evolução como animais selvagens até o desenvolvimento tecnológico e da mente, sempre em interação com o meio ambiente.
Tiwa leva seu pequeno Terr para brincar com outros Oms domesticados
Curioso que o jeitão sem emoção dos Traags também se repete nos humanos do filme. Quando Terr volta do holocausto ("deominização") que os ETs promovem com uma espécie de naftalina, ele reencontra sua amada e não vemos aquela clássica cena de transbordar lágrimas dos reencontros no cinema. O diretor nem se preocupou em retomar no final do filme a relação entre a jovem traag Tiwa e o herói que já foi seu animal de estimação - o sentimentalismo, na evolução de qualquer espécie, é o menos importante. Ou seja, não há aquela cena clichê em que homem e criatura, uma vez amigos, se reencontram após o conflinto, aflorando sentimentos.
Trilha, Fauna e Flora
A música e a trilha incidental do filme são uma delicioso atração à parte. Composta por Alain Goraguer e com ambientação e efeitos por Jean Guérin, Planeta Fantástico tem com o áudio um elemento tão definidor da ambientação extra-planetária quanto os próprios traços de Roland Topor e sua equipe de animadores de Praga. Com uma mistura de orquestração e funk easy listening, que evoluiu para guitarras histéricas oriundas dos spaghetti movies, a música do filme poderia ser o som da própria atmosfera de Ygam, com seus efeitos transcendentais e de natureza: sintetizadores reverberantes, placas de ferro e uivos de lobo; grilos robóticos, sirenes e toda espécie de notas tensas que indicam os acontecimentos do filme. O silêncio se faz presente nas resoluções dos diálogos - é necessária a compreensão total do que se passa no planeta.
A luminosidade sexual dos Oms é o melhor momento da trilha: lembra Air
O belzebu sugador de Oms
Planeta Fantástico pode assustar - gostaria de ter assistido a esse filme criança -, mas impressiona e e desconstroi a humanidade, o planeta e o meio ambiente numa guerra de espécies próximas de nós. Próximas no sentido de que a guerra, o caos e o estranhamento são sempre gerados na cabeça humana. E se a tecnologia é um futuro inescápavel, ela deve ser utilizada para o conhecimento e a interiorização do homem, representada no filme pela meditação dos Traags. Com a similiaridade de metáforas de Avatar, esta animação de 36 anos atrás reafirma sua atemporalidade e universalidade. A música, os visuais e as interpretações tão profundas e impressionantes são apenas o veículo; a arte sempre como expressão.
Texto:
http://rraurl.com/resenhas/7056/Planeta_Fantastico_1973